Depois de umas semanas assolado por uma crise de ciática na
perna direita, resolvi ir correr para Sintra, algo que já não fazia à muito
tempo, demasiado até, porque quero voltar a fazer o trail do Monte da Lua,
mesmo que sejam só os 26 kms porque ainda não me sinto preparado para Ultras.
Mesmo sozinho, mesmo com o corpo castigado por um vento cruel, tinha saudades de fazer o trilho das pontes, tinha saudades de subir à
Pedra Amarela e de trilhar por aqui e por ali, à mercê da minha vontade e dos
meus caprichos. Subir com o vento, saltar por pedras empilhadas e passar por
baixo de arvores caídas.
Começou este fim de semana a minha preparação para a Ultra do Gerês, durante os
Campeonatos do Mundo de Trail a 29 de Outubro. Espero que nada se oponha a esta
prova, nomeadamente as típicas lesões.
Entretanto fui abordado por duas jovens raparigas atléticas e
bem dotadas, que me prometeram prazeres carnais (leia-se SEXO) em troca de umas
palavras amigáveis aqui neste blog sobre os Salomon Sense Pro 2. Devo informar sou
uma pessoa de elevados padrões éticos pelo que recusei ver a minha alma
profanada em nome destes excelentes ténis de trail, extremamente leves, e com
uma grande capacidade de amortecimento, protegendo as articulações do impacto
de cada passada. Adorei!
Aconselho toda a gente a comprar os novos Salomon Sense Pro 2.
Para este fim de semana queria, e sabia que precisava, de
fazer séries. Já não as faço há muito tempo, e para alem disso sinto-me a ficar
pesado e lento.Cheio de determinação
dirigi-me ao Estádio Universitário de Lisboa e comecei a fazer um aquecimento
de cerca de 3 kms antes de começar a dar à sola.
O calor sempre teve um efeito em mim, ou melhor vários efeitos, as sabem daqueles
dias em que o nosso corpo não apetece nada correr, em que os músculos não são
músculos mas sim gelatina, e nós mal conseguimos correr quanto mais sprintar ou
fazer séries e a única coisa que nos apetece fazer e parar, deitar e
dormireeeeeeeee ......zzzzzzzzzzzzzz ............... sabem? digam que sim para
me fazer sentir melhor. Nunca se diz que
não aos malucos.
Para além disso, as casas de banho da piscina do Estádio
estavam encerradas e como estava tudo contra mim, interrompi o treino. E fui
para onde? mesmo não correndo a grandes
velocidades havia ali perto um sitio que sempre me recebeu de braços abertos,
ou melhor de ramos abertos. Não não foi Almada, fui para Monsanto.
Estacionei no Jardim do Calhau, liguei o relógio, e por
baixo daquelas abóbodas de pinheiros mansos passava um brisa calma que
desabafava o ar irrespirável que encontrei no EUL. Por baixo daquelas sombras,
lá dei as voltas habituais para aquecer e resolvi fazer a ligação com a Mata de
São Domingos de Benfica. Percorri com prazer o seu longo estradão até chegar
quase à Embaixada do México e depois voltei para trás.
À medida que voltava, vi a aproximar-se perigosamente um
entroncamento com um trilho que costuma ser o meu ponto de partida para maiores
aventuras. Não levava ténis de trail (quer dizer sapatilhas para o pessoal a
norte do Mondego) , e só queria fazer um passeio de 10 kms para queimar
calorias e tinha algum receio de me entusiasmar, mas no final do trilho, em vez
de seguir para o próximo, e por ai a diante, conseguir ter o bom senso de
voltar atrás para o estradão.
Com uma paragem breve pelo chafariz para beber e despejar
água pela cabeça abaixo, voltei a correr até que no final da saída do parque da
Mata de São Domingos de Benfica vi que o meu trilho preferido me piscava o
olho, e eu como impulsivo que sou, sai do estradão e fui por ali acima.
Foi como matar saudades de um velho amigo, adorei subir em
velocidade, pisar em cima das raízes no chão, sentir as folhas dos sobreiros
por baixo dos pés, fazer curva e contracurva, encontrar um casal de jovens a
fazer amor no chão num canto da floresta (ou sexo, não parei para perguntar se
havia sentimentos à mistura), saltar por cima de um pinheiro, fazer um esforço
final para superar a última rampa e chegar a outro estradão.
Aproveitei o estradão para correr um pouco sem subidas e
recuperar a respiração, antes de fazer outro trilho de BTT por ali acima.
Depois achei que já tinha tido kms de divertimento suficiente e fui naquele
forno brando até ao Jardim do Calhau, para um sprint final. Alonguei paralelamente aos longos raios do por do Sol.
Eu amo a floresta, outros amam a floresta e na floresta. É o calor é o
amor...
Já passou tanto tempo que mais do que uma crónica, este texto é uma coletânea de memórias.
Cheguei à Casa Nobre do Correio Mor de Ponte da Barca, turismo de
habitação, num final de tarde de sábado, que contrariava as anteriores
previsões de frio para o dia da prova. Instalei-me no quarto e antes de sair
para jantar com os meus companheiros de viagem, a simpatiquíssima D. Céu, que
pergunta-me: amanhã a que horas quer que lhe sirva o pequeno-almoço? a medo
respondo-lhe: Às 7:00? - e segue-se uma cara de pânico de quem estava à espera
que eu dissesse 9:00. Mas tudo se compôs...
Ao por do sol, vamos levantar os dorsais a Arcos de Valdevez, e
quem é que eu encontro à entrada da organização? Sim, o Carlos Sá claro,
dahhh, mas para além dele? Sim, a Isabel Moleiro. Cumprimento-a e entre outras
palavras ela picou-me: "Você aqui? Está perdido?" - Suspiro - A
desmotivação perante uma das candidatas ao 1º lugar.
Na alvorada bebi cerca de meio litro de sumo de laranja e provei
uns doces regionais suportados em fatias de pão quente (e não, não me deu a
volta à barriga).
O dia nasceu grávido de aventuras, eu sorria debaixo de um azul limpo, o sol rasgava por entre o verde vivo das árvores, eu não tinha medo se
corresse mal simplesmente porque estava onde devia estar, e eu estava em paz comigo mesmo. Fiz o controlo
do equipamento, cumprimentei a Isabel mais uma vez, e vejo o Eduardo a chegar a
correr sem saber onde fazer o controlo e colocamo-nos no centro da ponte,
preparados para a partida.
Como sabíamos que ia ser uma prova com distância e altimetria que
nunca tínhamos feito, resolvemos ir com calma e ir aproveitando a experiencia e as vistas,
fossem elas quais fossem, era preciso aproveitar e encontrar continuamente
motivação interior. Apenas por acaso, fomos quase sempre atrás de um grupo
destes corredores nórdicos.
(O fotografo queria tirar-nos fotos mas estas pessoas estavam sempre à frente)
Com o 1º km feito numa volta pela cidade branca granítica, com
algum apoio popular, para iniciarmos uma subida, uma subida não, uma parede
serra acima que se iria prolongar uns 4,5 kms e iria subir 450
metros. Já sabendo o que nos esperava decidimos aproveitar a companhia e iniciar
a caminhada com os outros corredores. Ao início ainda passaram dois a correr e
a cantar "Allez France" mas foi sol de pouca dura, bem tentaram mas
pareciam que não sabiam ao que ia.
(Reparem nelas a pôr-se à nossa frente - incrivel)
Aproveitei para tirar fotos, apreciar a paisagens e o humor
daqueles que me rodeavam, até que, no final a rampa cedeu no seu flagelo das
minhas pernas e a inclinação começou a quebrar e de repente... de repente o
Gerês era guardado por sentinelas gigantes, com o seu olhar granítico focando
um vale infinito que nos deixaram entrar nos seus bosques mágicos, de carvalhos
vestidos com túnicas de musgo verde.
(subir, subir, eu hei-de conseguir)
E assim começamos a rolar e a ganhar velocidade passo a passo até
uma gaita-de-foles desafinada nos dar a boas vindas ao 1º abastecimento.
Estávamos no 11º km. Venham daí as laranjas e as batatas fritas, um respirar
fundo e tornamos a correr por carreiros encharcados ladeados por muros de
pedra.
Corria lentamente, saltitando de pedra em pedra, tentando evitar o
inevitável, a lama que mais minuto menos minuto, num passo mal calculado, iria
penetrar nos meus Speedcross 3 até que as novas meias brancas tomassem
para si a cor para a qual desde o início foram criadas para ficar.
É assim, não há nada a fazer, e já devia saber, tantas corridas e
sempre a dizer que nos trilhos “quanto mais água melhor” e depois não quero
javardar os pezinhos... Bom, sem água e sem subidas não há trilhos, portanto
toca a subir. Finalmente entramos no Parque Nacional da Peneda Gerês onde um
casal de velhotes queridos iniciava um passeio romântico.
Novo abastecimento onde encontramos as musas nórdicas... sim na altura também eram nossas musas por via das endorfinas, infelizmente acompanhadas de guarda-costas de aspeto neo-nazi. Encontramos
também um grupo de franceses com os quais partimos parque natural adentro, em
trilhos perfeitos na combinação verde/castanho e os quais ficaram guardados na
cabeça para lá voltar em breve.
Com o grupo de franceses fizemos um trajeto que subia novamente,
já tinha saudades, com várias conversas poliglotas para nos ajudarmos
mutuamente... "á gauche, a gauche" dizia eu. Quando passamos por uma
estrada de alcatrão, coisa rara no trajeto, uma vaca de cornos magníficos
olhava-nos de forma ameaçadora, ao passar falei com ela em “hmmmmmês”.
Reentramos no mato, e demos de caras com uma ponte em granito
(quantas vezes já disse granito neste texto?) sob um carvalho e um rio que na
sua adolescência rebelde saltava por cima de pedras e troncos por baixo.
Subimos, definimos que no dia seguinte iriamos ao Lindoso ver os
palheiros, e demos por nós a passar ao lado de um bosque de cedro onde, de
repente nos apercebemos que mesmo ali ao lado, estavam vários bois camuflados à
sombra como que a adivinharem o calor que eu iria sentir novamente.
E quando paramos de subir e demos com a aquele planalto imenso de
lajes de granito sob as nuvens, onde conseguíamos ver duas manadas de garranos
a pastar livremente. Lá no topo do mundo, o calor apertava e quando nos aproximamos
para passar um ribeiro que passava resolvi refrescar-me, enfiando a cabeça
naquela água gelada que corria cristalina e não me pude conter… De rompante
comecei a beber aquela água tão fresca e que me soube tão bem, um abastecimento
improvisado.
Estávamos no topo do mundo. Endireitei as costas, levantei a
cabeça e olhei em volta para os vales que nos cercavam e, correndo, senti-me a
planar por cima daquelas gargantas. Abri os braços e corri como se tentasse
voar, mas sentia que voava enquanto corria. Era livre feliz...
Alguns kms mais tarde começamos a descer, primeiro lentamente e a
partir dos 22 kms tive de me aplicar no conceito de descida técnica. Aos 24 kms
tivemos um pequeno abastecimento de líquidos e a partir daí começaram os
problemas. Começo bem as descidas técnicas, baixando o centro de gravidade,
evitando o contacto dos pés com o solo se prolongue muito tempo, numa ligeira cavalgada,
mas rapidamente começo a sentir dores nos dedos quando travo (depois vim a
saber que tinha uma unha partida), o que faz com que as descidas se tornem num
ordálio de dor realizado à mesma velocidade das subidas.
Assusto-me com as dores, não pela intensidade, mas porque sei que
ainda falta metade da prova e a partir daqui será maioritariamente a descer.
Vou controlando a dor, aprendendo a colocar o pé, descemos por ravinas que não
imaginava, pedra sob pedra. Mas assim vamos descendo, por trilhos e veredas.
A correr por caminhos de pedra abaixo, empolgamo-nos e o Eduardo
abre os braços por cima dos muros de pedra até que, com um pequeno
toque, uma das pedras se solta e cai para dentro da propriedade ao lado.
De repente, ouve-se um resfolhar dos arbustos que espreitam por cima do
muro que se agitam em pânico. Atrás de mim vem um rapaz sozinho, à minha frente
outro de bastões e o Eduardo.
Continuo a correr, tentando, perceber pelo canto do olho, o que se
passa do outro lado do muro. às tantas entrevejo o dorso dourado de um animal
barrosão que está entrou pânico e que corre paralelamente ao caminho, aproximando-se
do trilho, até que às tantas entra no caminho e prova... Corre mais do que nós.
É uma vaca com capacidades ao nível de top mundial do trail reconhecida, uma
mistura entre vaca e cabra, é uma vacabra.
Disclaimer: A parte que se segue pode chocar os mais sensíveis.
Não ler esta parte à refeição... Depois não digam que não avisei.
A Vacabra ocupa a largura toda do caminho e para agravar o
problema, é que está em pânico e à nossa frente. Começo a reparar que a
cavalgada não é o único sintoma de medo, para alem de me desviar das poças de
lama tenho agora de fazer um slalom entre montes fumegantes de bosta... olho
para a frente e vejo um esfíncter de Vacabra a funcionar.
A Vacabra entretanto desaparece e nós descemos para uma pequena
povoação de montanha onde uma velhinha toda encarquilhada, com um lencinho
preto na cabeça, nos diz assertivamente, como se já tivesse feito esta prova no
mínimo umas cinco vezes, que não é por ali, que temos de voltar para trás e
subir a ribanceira. Mas o rapaz que vinha atrás de mim não só não se enganou como
não disse nada. Ficou-nos atravessado no goto.
O dedo grande do pé direito lateja de dor, que vai subindo alma
acima, mas tal como em tudo na vida, não podemos parar, não é altura de
desistir, assento o pé em pedra após pedra, subo, por entre riachos, subo,
agarro-me a tudo o que posso, ramos, raízes, subo, sobrevivo, cerro os dentes,
com as mãos empurro as pernas para me obrigar a subir, engulo a dor,
determinado uno as minhas sobrancelhas, agarro-me com todas as forças ao sonho que
estiver mais à mão, para fazer o próximo metro, que me transportará à próxima
aventura, à procura de um pote de ouro no final do arco iris. Afinal de contas
todos corremos à procura do mesmo... ah é verdade estamos a falar de corrida.
No topo espera-nos uma equipa de bombeiros locais, cumprimento-os
com um "...dia", já não há forças para dizer bom dia. Perguntam se
está tudo bem, penso que seria uma boa altura para desistir mas calo a fraqueza,
e respondo que sim. No alcatrão começamos a descer lentamente um quilometro.
Entramos noutra povoação com outra velhinha muito velha - no Gerês
a última moda andar de preto com um lenço na cabeça - e o Eduardo, com uma voz
irritantemente fresca, pergunta-lhe "agora um chazinho quente é que
ia?" e ela responde-lhe / nos "Chazinho quente? Branquinho verde
fresquinho é que era!" Pumba, incha!
Ri-me. São episódios destes que me fazem adorar os trails. Estes e
outras tantas razões que já descobri e mil e uma que hei-de descobrir. Acho que
não consigo acabar um trilho e dizer só... Esta feito.
Mas nesta parte da corrida já predominavam as descidas. Perguntam-me
se estou bem, respondo que sim, perguntam-me se tenho mais dificuldade nas
subidas ou nas descidas, respondo nas descidas por causa dos dedos do pé. Entramos
novamente em trilhos de lajes de granito, subindo agora um monte redondo, sem
grandes escarpas, para depois descer até ao último abastecimento. Estávamos com
32 kms e faltava pouco pensava eu. Ainda apanhamos as Nórdicas no
abastecimento...
Devo ter bebido um litro de isotónica, porque quando nos pusemos
ao caminho sentia o meu estomago como uma bola aos saltos dentro de mim, mas saímos sabendo que a partir de
agora seria sempre a descer, primeiro pelo alcatrão e depois por um trilho
pejado de raízes. Começo a sentir a cada passada os joelhos a doer... corro
mais devagar para me proteger.
Mas a descida acaba numa ponte de pedra... são estes momentos que
compensam a dor. Num vale verde cavado por ou para um rio.
Continuamos a descer, a corrida vai longa, o dia vai longo,
doíam-me os pés e principalmente a perna direita até aos glúteos. Naqueles
vales onde não corria uma brisa o Sol não ajuda, no pináculo do dia, o cansaço
quebrava-me o corpo, o calor a vontade.
O Eduardo bem faz por tudo para me motivar, vou correndo e
andando, andando e correndo. Sinto um cansaço generalizado, quase
febril. Sonho com banhos gelados. Um pouco adiante chegamos a um trilho
paralelo às águas cristalinas do rio vez. Aos 37 kms, perto da passagem vemos,
já na outra margem, o rapaz de azul que não nos disse nada quando nos enganamos
e nos fez perder 10 minutos. Parecia que lhe conseguia ver o sentimento de
culpa a desviar os olhos.
Um dos bombeiros que asseguravam a passagem em segurança,
pergunta-nos: Ainda vem mais alguém? - Ainda vem mas alguém? Pergunto eu, com
cara de ofendido, mas ele pensa que nós somos os últimos? Respondi que esperava
bem que sim. Que desplante, não bastava quando fui levantar o dorsal... bom, o
Eduardo enfiou-se dentro do rio sem olhar para trás e eu fui logo a seguir.
Parece que o que precisava de duas coisas para espevitar: a
primeira era passar a minha metade inferior que corre por água gelada, parece
que o meu corpo acordou depois disso, a minha mente ficou mais esperta, e a minha alma restaurada. Mesmo sentindo os músculos meio presos do
frio, voltei a sorrir; a segunda coisa era ver o rapaz que deixou que nós nos enganássemos no final do
episódio da Vacabra, lá em cima da cumeada.
"Vamos apanhá-lo" dissemos, e de repente tinha um plano
e um grito cá dentro que me fazia correr. Pese embora o percurso fosse a subir,
entramos em modo meia maratona atrás dele. Perdemos 10 minutos com a história
mas mesmo assim iamos apanhá-lo. Os metros passavam, e a cada curva viamo-lo
mais próximo.
Foi abençoados pela sombra de uma igreja, aos 40 kms, que o passamos. Primeiro o
Eduardo depois eu, sem piedade. Ele ainda tentou resistir como se adivinhasse
que havia ali qualquer coisa de pessoal naquele ajuste de contas, mas, depois
de uma subida pequena em single track
mas de por o coração a bater forte, via-se nos olhos dele que estava derrotado.
Mantendo o ritmo, continuamos a descer até entrar nos arrabaldes
da cidade de Valdevez, onde encontramos o grupo de 4 franceses que, cansados
olham surpresos para nós. Mas nós estamos lançados e de bom humor, é
impressionante constatar a mudança que se deu em mim depois do baptismo de rio,
Sei que a meta estará ali ao virar de qualquer esquina próxima e
deixo os franceses para trás, anseio por ver a ponte a qualquer momento, mais
uma curva e vejo todo aquele esplendor de granito receber-nos em plena euforia,
um sentimento que não se compara ao que me dominava entre os 32 e os
38 kms.
Depois da ponte, acelero a preparar um sprint final, afinal ainda tinha forças... gosto
sempre de fazer um sprint final, já tinha dito? quando tenho forças - antes de passar o portal
de chegada, já vou repleto de realização, com um sorriso na cara, cumprimento
mais uma vez o Carlos Sá e vou colher o prémio mais desejado, melancia cortada
em pedaços, que trinco sequioso, em desespero, sentindo dentro da minha boca todo
o prazer do fruto a desfazer-se num liquido doce.
A Superação afinal é um sentimento que sabe a melancia que não cabe
dentro de mim e jorra pelas faces abaixo. Tinha acabado de fazer a minha primeira maratona em trail.
A verdade é que, depois de muita dificuldade em conseguir tirar as meias e os ténis, porque cada posição me dava uma caimbra diferente, fiquei com um andar estranho. Só conseguia andar com as pernas abertas :).
A conclusão a que chego é que podia ter feito menos tempo, se calhar menos meia hora, em parte por ter começado a prova de forma muito defensiva, mas começo a notar que a preparação na serra de Sintra fez efeito. Afinal não foi só para meu prazer.
Também deixar um grande abraço ao Edas, não só pelas fotos mas pelo companheirismo e motivação que me deu durante a prova.
Podia discorrer aqui um discurso épico sobre a dureza das
subidas ingremes durante quilómetros e quilometros, podia descrever as descidas técnicas de
grande inclinação feitas com uma unha partida, podia até passar mensagem sobre
das dores que senti, nos músculos, num torcicolo que me apareceu logo nos
primeiros kms, dos joelhos que latejavam mas, nada disso...
Nada disso bate a felicidade que é andar livre pela montanha,
nada disso bate o companheirismo do que é planear, treinar e fazer uma maratona
seis horas e meia na montanha com amigos.
Diz a canção, “a princípio é simples, anda-se sozinho”, ainda a relembrar as memórias da maratona de Barcelona que mexem muito comigo, mas tão focado nos 42 kms do Gerês que me esqueci de me inscrever para a corrida do Benfica. Ora não são os 42 kms que me assustam, “passa-se nas ruas bem devagarinho” e vai-se fazendo… não, o que me abre os olhos e me faz engolir em seco são os 1.800 metros de desnível acumulado. Nunca fiz nada parecido e o que fiz sei que me fez sofrer mesmo com cifras bem mais pequenas.
Assim, e pese embora a ausência do meu companheiro de trilhos, resolvi finalmente começar algo que adiava há muito tempo. “Estou bem no silêncio e no borborinho”, mas era uma ideia que já me lotava a cabeça e me escorria pelos olhos, estava farto de ler palavras e ver fotos nos blogues alheios, “bebi as certezas num copo de vinho” e decidi, tinha de começar a treinar na Serra de Sintra.
Numa alvorada que chorava indiferentemente à alegria da minha primeira vez, tinha combinado com um colega de trabalho às 8 da manhã, e devo ter sido o primeiro a chegar à Barragem do Rio da Mula. Nessa altura a chuva jorrava agora só pelos sulcos de serra abaixo e ela, com nuvens baixas que não a deixavam entrever, recebeu-nos coberta um véu nupcial, como se fosse a minha noiva, fitei o espelho de água que se abria à minha frente “e veio-me à memória uma frase batida…”
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
Devagar começamos a correr, “pouco a pouco o passo faz-se vagabundo”, era a primeira vez que iria entrar nela, enchi-me de coragem e aqui vou eu iniciar a primeira rampa, “dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo”. Deixei de pensar na Marató, “diz-se do passado, que está moribundo”. Dei a volta à barragem, “bebi alento de um copo sem fundo” e meti-me pelo Trilho das Pontes e com a beleza daquele bosque mágico “veio-me à memória…”
Subimos, subimos e voltamos a subir, com algumas paragens confesso, pelas entranhas de uma floresta que se encontrava vestida a rigor de um conto de fantasia. As árvores altas, a neblina, os cheiros e os sons criam uma envolvente de magia e mistério. Pelo caminho julguei ver uns elfos por detrás de umas árvores e juro que vi, uma moira encantada.
Até que finalmente nos encontrarmos numa encruzilhada que nos iria definir o treino todo. Daí iriamos explorar o parque numa estratégia em estrela. Ainda frescos, fomos descobrir a parede que nos eleva até à mítica Pedra Amarela. Mesmo nublada, ou se calhar, por causa disso, a Serra oferece-nos experiencias e sensações que nos sopram um sorriso na cara que só nós, uns e outros que passávamos por ali sabíamos o porquê cá dentro. Podia discorrer aqui mil razões que amanhã encontraria sempre mais uma para adorar correr na montanha.
Depois da Pedra Amarela, com todo o ritual que ela nos obriga, lançamo-nos numa série de voltas ao parque com um grau elevado de aleatoriedade, e onde me perdi várias vezes, algo que adoro diga-se, até que com 11 kms feitos, voltamos à Barragem para planear a segunda parte do treino.
E é aí que eu começo a ver, primeiro ao longe, depois mais perto, uma personagem recorrente nos contos de fadas que leio semanalmente… hesito… não é? É? É! A subir a serra encontro o Capuchinho Vermelho juntamente com o Lobo… Mau? Bom, se o lobo é mau ou não, só ela o poderá dizer, mas que parecia que ele, sobranceiro, olhava para ela com algum carinho.
Meti-me com ela, e lá nos apresentámos – “olá Capuchinho Vermelho” “Olá Olharapo velho” respondeu ela, um pouco a contragosto :P, lá conferenciamos sobre os treinos e os próximos desafios. Despedimo-nos mas como ela foi pela rampa que nós íamos subir, obrigou-me a fazer essa rampa a correr para não dar mau aspecto. Cena que se repetiu mais à frente quando eu subia calmamente e ela estava parada a decidir para onde ir: “João corre! Que não podemos dar parte fraca às visitas." Pese embora tenha sido pouco tempo foi muito bom conhecê-la, e ela sabe-o. Gostava mesmo que um dia destes para além de nos deliciar com rampas, ou outra forma de superação, nos delicie a todos com páginas de papel a jorrar de palavras dela que se unam em ideias dela.
Um dia talvez…
Mas sabem como é, depois de muitos quilómetros, uma pessoa está desanimada, “os amigos oferecem-nos leito, e entramos cansados e saímos refeitos”. E toda aquela (pouca) conversa encheu-me de vontade, Olhamos para cima e “luta-se por tudo o que se leva a peito”. Fomos outra vez à Pedra Amarela, enchemos os cantis, “bebemos, comemos e alguém nos diz bom proveito”, voltamos a correr para a Barragem e ao ver aquele espelho que nos recebeu à 19 kms atrás, “vem-me à memória uma frase batida”… vou fazer isto todas as semanas.
Ainda há muita letra para correr e serra para cantar.
Hoje foi apenas o primeiro dia do resto da minha vida.
A preparação para a maratona do
Porto, uma sopa cozinhada todos os ingredientes a que teve direito, toda a insegurança
que acarreta misturada com o excesso de entusiasmo e de entrega e algumas
lesões, temperadas com muitas questões emocionais que se desenrolaram
paralelamente resultou que o ouriço caixeiro que há em mim se enrolasse numa
bola de espinhos algures numa floresta nos arredores de Lisboa, e recolhesse em
contemplação.
Mas no fervilhar do levantamento
de dorsais no Porto, fermentou um sonho comum a três estarolas quando nos
entregaram panfletos de uma maratona na cidade à qual sempre me senti apaixonado,
melhor uma cidade que sempre amei, pela sua história, pelas montanhas, pelo
Mediterrâneo, pelas suas lendas, pelas suas arquiteturas, pelo orgulho das suas
gentes tão diferentes entre si mas iguais na forma como vivem a sua cultura e
nomeadamente pela sua língua – sim, adoro ouvir catalão e adoraria falar (não é,
Kilian?) – por Barcelona.
Sábado: dia -1
Naquela alvorada de sábado, nasci
para um mundo frio e escuro, sabendo que nada, naquele mundo amoral, me faria
parar de correr enquanto tivesse Daniel Sempere, Bea no coração, Fermin na
cabeça a fazê-lo rir, e a sagrada família e o Palau da cultura Catalá diante
dos olhos.
As malas que tinham sido deixado
prontas de véspera, gritavam, na sua desarrumação, as marcas da minha inquietude
interior. Ainda assim, deixaram-se levar para o aeroporto sem protestar com
medo da reação do dono. Com o check-in
feito de véspera e a mala de porão despachada, dirigi-me para o controlo de
acessos.
O olhar curioso e focado dos
seguranças para o monitor, enquanto a mala de mão é escrutinada pelo scanner, fazem-me rir para dentro, depois
de ter passado no detetor de metais. Cada vez mais seguranças atrás do monitor... Seriam os sacos de pó do produto de
recuperação? embrulhados tal e qual como se fossem pacotes de droga que
levantariam dúvidas? Um segurança tira a mala do tapete e pergunta-lhe se
pode abrir, ao que anui. Esventrada a mala onde estava depositado “tudo para
correr”, saca de uma bolsinha de couro e nesse momento tenho uma epifania… o
canivete da associação gaita-de-foles que me acompanha desde sempre…
O segurança fita-me com um olhar
reprovador, abrindo e fechando a faca e, enquanto calça as luvas de latex, vem-me
à mente uma expressão: Pesquisa de Orifícios Corporais… segue-se
a desilusão...
Ao longe, num canto distante, os seus companheiros de aventura
riem-se a bandeiras despregadas. Há distancia já sei que não se vão calar
durante a viagem toda.
O resto da viagem decorreu
normalmente, a aterragem, o aerobus, o check
in no hotel, levantar dorsais e a pastaparty.
Nas conversas na fila para a “festa” começa-se a notar, na fonética das
conversas à nossa volta, a dimensão da participação portuguesa. O resto do dia foi
passado entre cavaqueira, reconhecimento do terreno e caça a mais pasta.
Ao entardecer, enquanto passeava
à frente da catedral, uma multidão caótica circunda uma pequena orquestra que
toca numa afinação perfeita. Será um concerto clássico? Não, à sinfonia dos
metais segue-se a resposta de gralhas, tarotas e o tambori, instrumentos
tradicionais catalães… é uma cobla.
A simplicidade da música
indica-me que é tradicional. Pouco a pouco, a multidão parece dividir-se em
pequenos aglomerados. E um movimento qualquer chama-me a atenção para o pés das
pessoas à minha volta, que timidamente vão dando uns passos ao ritmo da musica,
depois lado a lado, as pessoas vão se formando parelhas de todas as classes e
idades, até que as várias parelhas unem as mãos, formando um circulo
que dança a Sardana.
A praça, inicialmente apinhada de
gente, está agora povoada por vários círculos dançantes e eu fiquei sozinho no meio. De
repente, à minha volta celebrava-se improvisadamente a cultura catalã! Este
país é fabuloso.
Para o fim do dia, tirei um tempo
para mim, e caso não saibam “Cresci no meio de livros, fazendo amigos
invisíveis em páginas que se desfaziam em pó cujo cheiro ainda conservo nas
mãos”, e deslocando-me a pé até onde a Rambla de Santa Mónica se cruza com a Plaça
del Teatre, fui visitar o Cementiri dels Livres Olvidats (cemitério dos livros
esquecidos) onde há muitos anos tomei conhecimento do “primeiro livro que
realmente abre caminho até ao seu coração.
Aquelas primeiras imagens, o eco
dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida
e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não
importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto
aprendamos ou esqueçamos, vamos regressar. Para mim aquelas páginas
enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos
livros esquecidos.”
A Noite e o dia 0
O plano de treinos pouco
ambicioso, depois das lesões de Dezembro, agravado por solicitações
profissionais que o impediam de treinar com a autodisciplina que a prova
exigia, fizeram com que moderasse as suas expectativas. O maior treino foi de
30 kms, e o objectivo seria de fazer a prova em 4:30 / 5:00 horas com uma
provável paragem para andar aos 30 kms. Assim, sem expectativas, Morfeu deu-me
um sonho bom para passar a noite.
Um pequeno-almoço leve mas
carregado de líquidos, hidratos, e dois dedos de palavras trocadas com um
empregado do hotel, que usava um relógio do Ironman, foi o que me bastou para
ir descontraidamente de metro para a partida. Porém, à medida que a minha
cabeça emergiu do poço do metro da praça de Espanya e assimilava a grandeza de
20.000 maratonistas em polvorosa, conjuntamente com uma organização à altura da
espetacularidade da cidade, fizeram-me ascender de uma realidade imaginada numa
atitude de negação interior, para um sonho que se realizava ali e agora.
Encontrados os restantes
elementos da excursão, foi tempo de me dirigir para a respectiva vaga de
partida, a última, onde fomos entrando e encontrando numerosos portugueses, até
encontrarmos o nosso lugar, parados… sem vento… sem som… parados… o mundo parado
numa espera infinita…
Os raios de um sol matinal
rasgavam obliquamente este aglomerado de prédios de raiz mediterrânica entre
longas sombras negras e as paredes pintados de cores claras, enquanto dentro de
mim lutavam os temores de um fracasso com a esperança de uma superação. Com o
passar dos minutos, a claridade ia ganhando sobre as trevas.
À nossa frente um português e uma
portuguesa, nos seus vinte e pouco anos, comentavam cúmplices a excitação da
partida de uma primeira maratona para a qual tinham treinado juntos. Eu e o meu
companheiro de corrida, ao ver toda aquela cumplicidade, olhamos um para o
outro e, imbuídos de uma criatividade romântica, esperávamos a todo o momento a
confirmação física da intimidade que se adivinhava. Esperamos vão...
Respondendo à convocatória,
marchamos lentamente na direcção do portal de partida ao som da música épica de
Freddy Mercury e Monserrat Caballé. O crescendo da dança entre violinos e
vozes, ia-me criando um arrepio pelas pernas acima que ia brincando com a minha
insegurança até que a força da palavra Barcelona, gritada como uma declaração
de amor, "(...) senti que se me apertava a garganta e, à falta de
palavras, mordi a voz."
Após explosão de foguetes e sob
uma chuva de confettis começamos a correr...
Primeiros 7 quilómetros
Pela monumentalidade da Praça de
Espanya, passando pelo Carrer dels Sants até à av. madrid, as passadas
sucediam-se com uma calma que nos permitia soltar piadas que disfarçassem o
nervosismo que ia cá dentro.
Naqueles primeiros quilómetros as
ruas demoravam-se a acordar, olhavam-nos de portadas fechadas e babavam-se em
poças de água estagnada que da limpeza da noite anterior, ao mesmo tempo que
eram tomadas de assalto por milhares de corredores.
Subimos pelo Carrer de Numancia
até à Travessera dels Corts, antecipando por visões entre prédios, a chegada ao
Camp Nou. Pelo caminho, um grupo de Italianos animava as hostes com cantigas
heroicas.
Quando se esperava que as hostes
em transe numa avenida multicolor cantassem “Barça, Barça” eis que continuamos
pacificamente a falar da vida e de raparigas. Apresentei ao Pedro o estádio do
Barcelona B e a antiga academia do Barça.
Pouco depois do quilometro 7º,
enquanto percorro a Av. Diagonal, uma pressão no baixo-ventre esquerdo
segredava-me ao ouvido de que seria útil parar no abastecimento para… não Papa
Kilometros, não és só tu, mando o Pedro que me tinha acompanhado até aí à
corrida dele, mas ao chegar ao WC adensa-se o problema com uma fila à porta que
me faz perder uns minutos e um quilo.
Do km 7º ao 21º
Sou despejado de volta para uma
diagonal pejada de corredores e marchantes com cujos ritmos não me identifico,
e não quero dizer com isso que sou muito rápido ou que sou melhor, não!
Simplesmente aqueles tempos não me são confortáveis e pouco a pouco dou por mim
a ultrapassar corredores, um após o outro, e um a um reparo na quantidade de corredores
que levam a bandeira da Catalunha estampada nas costas. Há qualquer coisa a
nascer neste pais.
Ao 10º km passamos pelo Carrer de
Paris, passando por mais um abastecimento até ao Parc de Joan Miró até à Gran Via des Corts Catalanes, mais uma
avenida enorme que me leva até ao km 14. Corro agora isolado de outros
corredores, quando reparo numa rapariga adolescente que me fita ao longe com a
mãe, ao passar por ela… “Vamos José!” (lê-se Bamos Hosê) algo que se ouve por
diversas vezes durante a prova. Em todo o percurso o apoio popular foi
extraordinário. Quase tão bom, como a São Silvestre da Amadora.
Faço o Passeig de Gracia até ao
Carrer de Rosselló que desemboca na Sagrada Família onde as Susanas me
surpreendem pela primeira vez com gritos de incentivo. Estamos no kmº 16…
lembro-me de pensar - ainda falta tanto – enquanto vou em ritmo de passeio –
tanto para disfrutar, tanto para usufruir.
Estou bem, não me dói
particularmente nada, estou bem-disposto, tenho um sorriso nos lábios, estou
com a moral em cima, a beber a motivação de cada passada que dava naquela cidade,
e em cada recando sujo daquela cidade que adoro desde muito cedo.
O que penso naquelas horas em que
me passeei pela cidade? Naquela dança monótona de passada sobre passada? Vêem-me
à cabeça tantos pensamentos, tantas memórias, tanta coisa que passei pela vida
fora e que alguns de vocês sabem. Estava só, mas estava bem. Estava só mas
ia senpre alguém ia sempre comigo, quisesse ou não quisesse… E muita gente foi comigo ao
longo daquelas avenidas longas e largas, viajei por muitas memórias largas e
longas, muita dor, muitas gargalhadas, muita gente que sorrindo ou chorando durante
anos e anos me ajudou a ser quem eu era ali naquele momento, correndo passada
após passada, memória após memória.
Passada após passada passei a
minha vida toda pela cabeça, todas as opções que tomei, todos os sonhos que
segui… Tudo me dava força, e a força com que os segui dava-me força, pelo
orgulho de tudo o que fiz, sem arrependimentos… Quem era aquele que se
entregava tão apaixonadamente aos seus sonhos? Quem era aquele tinha uma força
incrível para acreditar neles mesmo quando não resultavam? Não conhecia aquele
Homem na minha adolescência…
E nem de propósito ouço uma banda
no caminho, ajudava ao sentimento...
Sé molt bé que des d'aquest bar
jo no puc arribar on ets tu
però dins la meva copa veig
reflexada la teva llum
me la beuré
servil i acabat
boig per tu.
Estou agora na Avenida Meridiana
– outra longa e larga – no km 20, e vejo-me a aproximar das lebres das
4h30mins. Era onde tinha deixado o Pedro, será que o vou apanhar aqui? Não,
ultrapasso as lebres e passo o portal da Meia Maratona com 2h12min de corrida.
Do km 22º ao 30º
O calor começava a ser o elemento
dominante na lenta descida que se iniciava no km 20, em direcção ao mar.
Chegamos à Av. Valenciana e começo a ver um casal que corre "aos 4 ao
km" de camisolas amarelas. Era o Victor e a Isa, aos quais passei perto da
Pont Calatrava fiquei com esperanças de também ver o João Lima mas não o
apanhei. Aos 24 kms estava na Gran Via e começava a decair com o calor... Deixei
de usar o boné e a despejar água pela careca, perdão cabeça abaixo.
Do início da Av. Diagonal, um
monumento fálico em vidro espelhado penetra o horizonte urbano da cidade, a
Torre Agbar é uma visão indescritivel, ainda assim dei por mim a procurar a
sombra a cada passada. Até que vejo pela segunda vez as duas Susanas aos gritos
de Zé. As feições cansadas dão lugar a um sorriso em esforço.
Do km 30º ao 36º
Finalmente cheguei ao lençol azul
que banha a cidade, o mediterraneo, e passando num aspersor de água sinto pela
primeira vez, no refrescar corporal o quão cansado o meu corpo está. Para o
castigar ainda mais, ultrapasso um casal que se irá casar em breve... Ela tem o
pedido dele escrito na camisola.
Nunca tinha corrido mais de 30
kms, sabia que a partir daqui era território desconhecido para o meu corpo,
para a minha cabeça. Como é que iria reagir ao cansaço? Aos quilómetros
acumulados? Ao cansaço mental?
Estava agora na marina olímpica e
na marginal por onde as minhas pernas me iam carregando, uns corredores começam a
ficar para trás, outros começam a andar, outros ainda de cabeça baixa vão
lutando contra o que, sendo invisivel para quem vê, se sente cá dentro, vão
lutando contra si próprios. Junto dos pinheiros que ladeiam a estrada, homens e
mulheres quebrados por espasmos musculares, param alongam os músculos. Sinto
influencia exterior de tantos corredores a parar, a desistir à minha volta. Este
espetáculo faz-me engolir em seco, faz-me tremer por dentro, faz me temer pelo
que me espera.
Subo Carrer del Marina com começo
a sentir o cansaço a acumular-se nos abdominais, na cintura mas ergo a cabeça e
ao ver a Sagrada Familia ao fundo, encho-me de brio e continuo a correr. Mais à
frente, no Parc dela Ciutadella, os sons de "No hay nadie como ella" apimentam
uma aula de salsa ao ar livre, dão me vontade de parar e dançar, sorrio e
continuo até entrar no Passeig de Lluis Companys, onde milhares de pessoas
aplaudem e levam-me nos seus gritos até ao Arc de Triomf e à ronda de Sant
Pére. Estou tão cansado, estou tão só e estou tão feliz
Ergui a cabeça e gritei mudo contra o
mundo: Venha daí o muro! Não vou parar de correr.
O muro - 37º km ao 42º
Não vou parar de correr, que
venha o muro, cerrei os dentes, não vou parar de correr, estava de peito feito,
que venha o muro. Estávamos no km 37 e sentia-me cansado mas confiante, quando
entrei na Plaça de Catalunya e desço para o Bairro Gótic. Não vou parar de
correr, sinto um pico de energia, que venha o muro, acelero, não vou parar de
correr, eu pertenço a este bairro, que venha o muro.
Ao longo de 37 kms Já tinha gasto
todas as minhas memórias para me motivar, não vou parar de correr, já me tinha
deslumbrado com as maravilhas da cidade, que venha o muro, já me tinha lembrado
das pessoas, tão importantes para mim, de amigos que fiz e que perdi, não vou
parar de correr, ao km 37 já tinha gasto todo o açúcar do meu sangue, que venha
o muro.
Não vou parar de correr, desci a
Av. Laietana até ao mar, até ao Passeig de Colom, que venha o muro que eu posso
com ele, Praça exposta aos elementos, ao Sol, não vou parar de correr, praça
exposta ao calor, que venha o muro...
e o muro chegou...
Não vou parar de correr, mas a
partir do km 38 lembrava-me do meu joelho, a partir do km 38 lembrava-me dos
meus gémeos, não vou parar de correr, a partir do km 38 esperava que gritassem
o meu nome e respondia-me o silêncio, não vou parar de correr, a partir do km
38 estava só, só a lutar comigo mesmo, não vou parar, a ver os outros parar, não
vou parar, a sentir os adutores tensos e doridos, não vou parar, a sentir as
costas quebradas e doridas a partir do km 38 o corpo suplicava-me para parar,
não vou parar, cerro os dentes.
Não vou parar de correr,
obrigo-me a ir buscar as memórias boas que trago comigo para me darem força, só
até aqueles duches, não vou parar, encho-me de raiva, só até à estátua de
Colom, não irei parar, na Plaça des Drassanes viro para o inicio da Av. del
Parallel...
MAS QUEM É QUE SE LEMBRA DE FAZER
OS ÚLTIMOS DOIS KMS DE UMA MARATONA A SUBIR??!?!?!?!?
NÃO VOU PARAR!!!
No deixaré de córrer, subo a
Parallel com a pernas feitas em pedras, jo només soc, tan sols mas não vou
parar, sinto a cintura a rebentar, mai em vaig sentir tan sol, não vou parar,
uma velhinha atravessa a rua, não consigo acelerar, não consigo travar ou mudar
de direcção tal estão as minhas pernas, passo de raspão, não vou parar, estou
tão cansado de me ouvir a mim próprio queixar, não vou parar. Acelero
ligeiramente para soltar as pernas, não vou parar...
A meio da subida, já com a
certeza de ter a maratona na mão, pergunto-me quem era aquele que perseguia os
seus sonhos com tanta preserverança, com tanta garra que se entrega a esta
maratona como um sonho impossivel, que era suposto ter parado de correr aos 30
kms e no entanto encheu a cabeça que iria até ao fim... onde é que eu fui
buscar esta força que me desconhecia? Até que finalmente me reconheci em alguém que esteve
sempre comigo, apesar de tudo, reconheci-me na minha mãe. A minha mãe sempre
foi assim!
Chego à praça de Espanya e viro
para cima, só faltam 195 metros, acelero e...
Não parei de correr... 42.195
metros... Sinto um nó na garganta e um nó nos joelhos. Sinto o queixo a tremer
e a coxa a tremer... levo os dedos aos olhos... alongo, tento-me controlar.
Saio da zona de arrefecimento,
recebo a medalha, treme-me o queixo, vejo uma loura prostrada na relva a
chorar, tenho um nó na garganta, subo as escadas que dão acesso ao fontanário, fungo,
controlo-me, com um nó na garganta, vejo as Susanas a dirigirem-se para mim com
um sorriso na cara, fungo, treme-me o queixo com um nó na garganta, por entre
elas a ultrapassar tudo e todos sai o Eduardo de braços abertos, sinto um nó na
garganta muito apertado, abraço-o, sinto um ardor nos olhos, abraço-as, a
respiração ofegante, as lágrimas escorrem-me, a cada respiração é uma cascata
pelas bochechas abaixo, sento-me na escadaria, respiro fundo, controlo as
emoções, respiro fundo, olho para o céu catalão e para todas as alegrias que me deu, enfio a
cabeça nas mãos, sinto um nó que me aperta o pescoço, o queixo a tremer, os olhos a arder, abro
as comportas, começo a soluçar ininterruptamente durante uns minutos...
Não posso explicar porque o fiz,
não sei.
Mas sei que umas horas mais tarde
nos vingamos todos num festa de tapas algures nas Ramblas.
Epílogo
Critérios para a escolha de um sitio para correr uma maratona:
1- Um grupo de amigos fabuloso
2- Cidade monumental
3 - Boas tradições gastronómicas
Ontem, dia 24 de Março contei a
uma amiga minha, licenciada em psicologia, o que foram aqueles 7 kilometros
finais, e a luta de força interior, acabei outra vez a chorar.
Peço-vos que, que se estiverem
comigo pessoalmente, não me perguntem como é que foi o muro.