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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Grande Prémio Zeca Afonso em Grandola

 
Lembro-me vagamente que a minha felicidade tinha um olhar malandro, um sorriso inocente e rebuçados na mão... mas tudo foi estraçalhado uma fração de segundo depois, por um som insistente irritante de um despertador.
Estava tudo negro, era domingo de madrugada e um relógio distraído insistia em emitir um som estridente, pensando que era segunda feira. As minhas pálpebras sentindo o calor da cama e coladas uma à outra pela memória do sonho passado, recusavam-se terminantemente a abrir mão daquele abraço ao globo ocular, à espera de voltar a um mundo cujas portas já se tinham fechado para sempre.
Tenho de me levantar e ir trabalhar pensei, mas não, afinal hoje é domingo e não segunda e são 6:40, dia do Grande Prémio de Grândola - Zeca Afonso. Mas porque é que eu me meto nestas andanças? Viciado em corridas, que amor doentio é este? Lembrei-me dos versos de Camões cantados pelo Zeca:  Aquela cativa /Que me tem cativo, /Porque nela vivo/ Já não quer que viva, ou os amargurados: Que o amor não me engane...
Dentro da minha cabeça, algures no meu hemisfério esquerdo, três velhinhas muito velhas, todas encarquilhadas cobertas com mantas negras que se encontram à volta de uma fogueira avisam-me: Nunca se deve voltar onde se foi feliz!
Quis o destino que eu me tentasse inscrever para todas as corridas que não aconteceram: A corrida dos Maristas e a Ex Clássica de São Domingos de Benfica pelo que "não tive" outra hipótese senão ir correr pela 2ª vez a Grândola. O Fado é assim, não se pode alterar.
 
Desta vez consegui convencer o agregado familiar mais próximo, nomeadamente os sogros, a embarcar nesta viagem. E foi na carroça familiar com um escudo de leão rampart que atravessamos o Tejo, mergulhar num mar de sobreiros com o ar a 5ºC.
Depois da minha mente aterrar em Grândola, levantei os dorsais, virei as costas à família e fui aquecer, por sua vez a família virou-me as costas e foi-se debater longamente com umas bolas de Berlim.
A verdade é que, desde a pubalgia que me tem sido difícil fazer grandes distâncias, pelo que optei nos últimos meses por treinar velocidade. Sentia-me capaz de bater o record pessoal dos 10 kms de 50:31, seria algo de rés vés mas com a companhia certa a azucrinar-me a cabeça andava a treinar muito bem e  este era o meu objetivo para o 1º trimestre.
 
Antes da partida começo a sentir uma grande pressão abdominal... gases (sim, escreve-se sobre estas questões neste blog). E como sabem, os gases são a antecâmara da morte do corredor, não só dificultam a respiração como... bom, se os gases são a antecâmara, a camara propriamente dita conseguem imaginar o que é? Se não conseguem, pesquisem fotos da Paula Radcliff  na Maratona de Londres 2005.
Depois da partida, arranquei com os outros corredores num ritmo caótico, como se fosse uma sopa de atletas que se despeja pelo cano abaixo. Ainda perdi uns 7 segundos pelo menos... a atar os atacadores, mais uma vez.
Tinha pensado correr na defensiva os primeiros kms, mas tal não foi possível. A dinâmica inicial levou-me de uns planeados 5:20 para os 4:59 e o segundo km a 4:53 - Este ritmo leva-me a uma dor de burro antes do km 6ª de certeza, pensei.
Nos kms seguintes consigo conter-me para um ritmo ligeiramente acima dos 5:00 por km, quando saímos da cidade, passámos por cima do viaduto sobre o IC1, entrámos pelo montado de sobro adentro durante 1,5 kms para voltar à cidade.
Ao 9º km sei que ou é agora ou não é. Acelero gradualmente a passada conjuntamente com um companheiro ocasional que mais à frente rebenta.
A cada passo sinto que posso ficar abaixo dos 50 minutos, e lembro-me que o homem que me levou a correr, o Ricardo está de baixa mais uma vez, lembro-me da personal trainer que andou a chatear a molécula para perder peso e para correr mais depressa, penso na dor de burro que me está a aparecer. Na praça principal o resto da família observa à frente do café as últimas centenas de metros.
Viro à direita para a reta da meta e vejo o cronómetro oficial nos 49:20 tento acelerar, mas pela primeira vez numa corrida não tenho forças para sprintar, corto a meta aos 49:20's e qualquer coisa, bato o meu record!
Finalmente! Depois de tanto esforço, de tantas lesões... e de repente sinto um vazio, a falta de alguém para partilhar a alegria, nenhum amigo para fazer um Hi5, um abraço, ninguém para comentar. Falta-me o Ricardo que é um grande entusiasta, falta-me a Sofia com quem treino, falta-me o Pedro e o Rui, enfim. É tão inócuo o sucesso individual quando não se tem ninguém para partilhar a alegria, não é?
O que vale é que as instalações do Grupo Desportivo de Grandola disponibilizam um banho organzado, quentinho a que se seguiu um repasto de iguarias alentejanas. Foi a segunda vez que lá voltei e foi a segunda vez que lá fui feliz.

8 comentários:

  1. Muitos parabéns pelo record!!! Em 2007 também bati aí o meu record dos 10 e que durou 4 anos. Só não consegui baixar dos 50 minutos por 8 segundos :)

    Gosto muito desta prova e só o plano para Paris me impediu de ir.
    E conheço lá um restaurante que faz um cozido à alentejana divinal :)

    Um abraço e força para as próximas!

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    1. Obrigado João, a prova é de facto muito apelativa. Pela viagem, pelo passeio, pela parte em estradão.

      E claro, no final temos sempre o dever de contribuir para a economia local, com cozido à Alentejana.

      Força para a maratona de Paris.

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  2. Parabéns pelo novo RP! (E pelo texto, muito bom como sempre).
    Eu acho que se deve sempre voltar onde se foi feliz e o teu caso comprovou-o.
    Bjs e boa recuperação!

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    1. Obrigado pelos comentários do texto :) :) :)
      Hei-de lá voltar várias vezes e convidar mais amigo para visitarem.
      Bjs e mais uma vez obrigado

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  3. Muitos Parabéns Zé...ca...mi!!!
    Ouvi dizer que o último km foi a 4:07! Foooogo!!! Qualquer dia estás a fazer séries a 3:58 ... :)
    Isso agora não interessa nada! O que interessa é que te sentiste feliz por te teres desafiado e vencido.

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  4. Como sabe já fiz ontem a 3:57!!! :) Obrigado Sofia má mi pelos comentários e pelos treinos físicos e mentais.

    Beijinhos

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  5. Parabéns pelo retorno à competição após a lesão.
    Bem sei que não foi aqui mas pelos visto este GP já foi feito "sem medos", no limite, até "sem forças para sprintar".
    E ...belo almoço, perdão, reforço de glicogénio.

    Abraço

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  6. Obrigado :):):) Foi uma sensação muito boa.

    Bons treinos e boas provas

    Abraço

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