CONQUISTEI E FUI CONQUISTADO PELA MONTANHA
Introdução
Aceitando o desafio de um amigo inscrevi-me para o meu primeiro mini-trail
a sério (reparem no paradoxo “mini/a sério”) em Montejunto na altura
publicitado a 18 kms, mas que na altura da inscrição já ia nos 20 kms.
Durante o tempo de preparação tratei de comprar o mínimo de equipamento,
nomeadamente a Camelback e os ténis de trail. Consultei a altimetria do
percurso e lá reparei na subida ao km 6º, que claramente se salientava.
Preparei os horários da excursão que nos levaria ao seio da serra, a Pragança.
Talvez da antecipação, e tal como uma criança, na noite anterior NÃO DORMI NADA!
Levantei-me quase às cinco da manhã, com a alvorada e a cabeça submersas em
brumas, para ir buscar a Sofia e o Joel. Depois do autocarro do blog recheado,
seguimos para a zona do Oeste, rumo à aventura.
Como não tenho GPS, e me esqueci dos mapas impressos, tivemos de fazer o
trajeto de memória e por orientação à vista. Acontece que, quando começámos a
circundar a serra pelo ocidente, à procura de Pragança à nossa direita…não se
via nada. Mas com a ajuda de um GPS nativo de setenta e tal anos conseguimos
chegar ao local da chegada (de onde partiriam os autocarros da organização para
nos levar à partida).
Levantamos os dorsais, convivemos com a malta da instituição e
instalamo-nos bem sentadinhos no autocarro quentinho e fofinho… adormeci e numa
cabeçada aérea acordei. Enquanto o autocarro atravessava a serra,
apresentava-nos aos poucos os percursos que iriamos fazer daqui a meia hora.
Partida – 1º abastecimento
Depois da partida, arrancámos a correr por um estradão de terra batida por
alguns quilómetros ao que se sucederam algumas subidas que serpenteavam por
entre os olivais. Foi a primeira vez que tivemos de parar de correr e começar a
marchar.
Foi aqui que reparei pela primeira vez que a cara de uma corredora tinha
uma aura feérica, prateada. Parecia uma fada na floresta. Seria a emanação de
uma alma iluminada? Seria um super poder tipo pokemon? Não, eram os pelos da
cara que estavam cheios de orvalho criando um efeito espetacular.
Aos olivais, sucediam-se troços mais planos, e à marcha sucediam-se novas
corridas. Ao estradão sucederam-se trilhos individuais. Saltando por cima de
poças, evitando areas enlameadas, deslizando à volta de oliveiras e sobreiros
que esticavam os ramos só para nos apanhar. Parecia o Tom Sawyer! Aliás, SENTIA-ME
O TOM SAWYER.
Quando vocês eram pequenos, e quando viajavam de comboio, naquelas viagens
longas para fora de Lisboa, nunca experimentaram olhar pela janela até que a
vossa visão se perder naquelas paisagens e num rápido e ininterrupto suceder de
bosques, montanhas, planícies, cercas, estradas, serras, casas, arvores, montes
enquanto na vossa mente vocês estavam a correr lá fora, acompanhando o comboio?
Não? Se calhar sou eu que sou..., mas era assim que me sentia. A correr na
natureza, a viver uma aventura.
(onde está o Huck?)
Assim continuamos, por subidas florestais e campos agrícolas até ao 6º km,
onde se encontrava o primeiro abastecimento de água, que soube tão bem. Parei
para reagrupar e para inventarias as espécies de arbustos.
(as vistas do 1º abastecimento)
Tojo, estevas, alecrim, cicuta, giestas, urze, azevinho que me lembre e
ainda assim acho que me esqueci de alguns. E árvores? Pinheiros, oliveiras,
azinheiras, freixos, medronheiros, carvalhos, sobreiros, cedros, carrascos,
eucaliptos. Vimos mais árvores na parte final do trail, junto a Pragança, mas
já lá vamos.
Subida à Serra – 2º Abastecimento
Esperava-nos uma longa e ingreme subida por uma calha estreita à base de
calcário, mas finalmente já estávamos por cima do lençol de nuvens... e a
paisagem era deslumbrante! Lembrei-me da canção dos Gaiteiros de Lisboa:
“Subir, subir ind’hei de conseguir…”, mas o resto da música não tem a ver com
trails.
(mas afinal vieram correr ou fotografar?)
Subimos, subimos, fotografamos, fotografamos e chegamos à cumeada, e
contornamos até chegarmos ao topo, onde se situam as ruinas do antigo convento
Dominicano.
(subir, subir)
Depois começamos a descer, no início foi um alívio mas depois foi toda uma
nova sensação. Num trilho, feito pelos Dominicanos há séculos, bem polido do
uso secular, tentava não derrapar e exclamo para mim próprio – “olha, nunca
tinha usado estes músculos anteriores das pernas na corrida”.
(pelo Convento)
Batemos o pé no alcatrão e, como que por condicionamento pavloviano,
pusemo-nos a correr rua abaixo… mas perdemo-nos do percurso… e lá nos
reencontramos… afinal não era para ir pela estrada, era mesmo para ir por um
trilho minúsculo no meio do mato.
(Real Fábrica de Gelo)
Mais à frente, chegamos à Real Fábrica de Gelo, não sem antes ser
corrigidos no caminho por um grupo de bombeiros que lá se encontrava. E foi
aqui que deixámos o Joel para trás. Passamos pelo museu local, literalmente
pelo meio do museu, e na direcção de um frondoso bosque de cedros. A sombra da
copa dos cedros por ser tão densa, é sempre um alívio de frescura. E finalmente
chegámos ao 2º abastecimento. Altura para fazer um ponto de situação… Sentia-me
bem e principalmente
SENTIA-ME NO TOPO DO MUNDO, QUERO FAZER ISTO PARA SEMPRE!
Lá tivemos direito a água, salgadinhos e marmelada, que me souberam tão
bem.
Volta na Serra – 3º Abastecimento
Seguiu-se uma volta larga na serra, a meio da qual se partiria o percurso
entre o grande e o mini trail. Iniciamos a correr em descida até um ponto onde
se tornaria impossível correr sem dar um tralho, após alguns kms avistavam-se
as placas que SEPARARIAM OS HOMENS Grand Trail para a direita - DOS RATOS -
mini trail para a esquerda... Viramos para a esquerda.
Efetuada esta separação, fomos voltando à esquerda , pouco depois
à esquerda novamente e recomeçamos uma longa subida. Se até à altura me tinha sentido bem fisicamente, começava agora a sentir alguma dificuldade cada vez que recomeçava a correr. As pernas custavam a responder e começava a ter sensações “esquisitas” nos tornozelos.
Voltamos ao ponto do 2º abastecimento e a organização mandou-nos continuar
para a direita com o aviso: "CUIDADO QUE É UMA DESCIDA MUITO TÉCNICA!".
Iniciamos a descer com algum receio e logo reparamos que nos enganámos...
perdão, enganei-me no caminho. Voltamos para trás, descobrimos qual era o
trilho que era suposto estarmos a correr e reiniciamos.
Assim fomos pulando e correndo, correndo e pulando até chegar a uma
cumeada. A vista lá de cima era inebriante. Já se avistava Pragança... cheirava
a meta!
Mas primeiro apanhei uma lição sobre descidas técnicas. Tratava-se de uma
ribanceira muito ingreme, com um trilho mínimo rodeado por arbustos e atapetado
com raízes e pedras pequenas de calcário. A receita perfeita para uma queda
épica.
Já com uma nova parceira de circunstancia, a Catarina, resolvi descer pé
ante pé, com muito cuidado porque qualquer tropeção daria direito a um tralho
de várias dezenas de metros quando de repente o nosso grupo de 3
pseudo-corredores ouve um grito: "ABRAM ALAS!" Estávamos nós com
tantos cuidados e passa por nós um corredor profissional a sprintar falésia
abaixo e nós estupefatos... apazurdidos... de queixo caído. Como era possível,
o homem era doido.
No final da descida e depois de alguma ginástica - a idade não perdoa - fui
obrigado a passar por tuneis improvisados, criados por baixo de alguns
eucaliptos caídos desde a última tempestade.
A ravina de calcário deu lugar a uma floresta de árvores mediterrânicas:
sobreiros, azinheiras e medronheiros, com os ramos vestidos com longas mangas
de musgo tecidas. O sol deu lugar à sombra das árvores e o ar seco deu lugar a
um respirar aliviado e humido. Parecia que tinha entrado numa antecâmara de um
templo e as orações eram feitas não com palavras cantadas mas com o esforço das
pernas.
Se bem que a mudança de ambiente foi muito agradável, mais uma vez tínhamos
árvores de copa baixa a apontar a ramagem ao nível dos meus olhos. Desta vez, acho
que só apanhei três estaladas arbóreas na cara. Já não tinha coordenação motora
para me conseguir desviar.
Para complicar, também as pedras do caminho se encontravam cobertas de humidade
e musgo, como se, e pese embora o leito do vale seja de calcário, uma pedra
porosa, só no pico do Verão secasse. 367 quase-escorregadelas depois finalmente
tive de parar de descer… para começar subir a pique, agarrado às raízes e
troncos, parecia uma cabra, perdão um cab... vá bode.
E voltamos a descer, a descer, a descer, numa ravina. Doiam-me os
tornozelos, doia-me o joelho direito, doia-me os musculos anteriores das pernas
e doiam-me as sobrancelhas se fosse preciso. Descemos até ao 3º abastecimento.
Novamente água, novamente salgadinhos.
Ultima parte
Já só faltavam três kms para a meta e a partir daquela altura seria sempre
em estrada, ou assim pensavamos nós. Decidi não começar logo a correr porque a
estrada ainda tinha um declive mas logo de seguida as minhas companheiras
arrancaram e eu para não ficar mal na foto, arranquei também.
Porém as minhas pernas já não sabiam correr. Eu não corria, dava uns
passitos que parecia que estava a correr, os musculos pesavam-me mas eu
obrigava-me a continuar. Rapidamente, se desfizeram as ilusões do alcatrão e
voltamos ao estradão.
No estradão por sua vez, eram os tornozelos que não respondiam, não tinham
força. A cada torrão de terra, a cada pedra e a cada raiz não reagiam e
significavam um potencial tralho em grande. Entretanto a Sofia resolve-nos
deixar, já estava farta de tanto sofrimento e desata a correr por ali fora,
logo seguida de um profissional dos trails que nos cumprimenta cordialmente, e
nós vamos atrás deles.
Todavia, algum deles se enganou no percurso porque logo a seguir o cordial
transmutou-se rapidamente num "FO...-SE, CA...LHO" - atenção, não fui
eu que disse. Fiquei chocado, não estou habituado a este nível de liguagem...
Voltámos atrás e finalmente entrámos na vila. Mas claro, entrámos pela zona
mais dificil. NÃO PODIAMOS TER ENTRADO POR CIMA DA VILA?!?!? tinhamos que entrar
por baixo e subir novamente?
Finalmente chegado à recta da meta, vejo um fotografo em posição agachada,
parecia um profissional que apontava a sua arma para mim. ERA O RICARDO! Tinha
que cumprimentar aquela careca. E encontrei forças para um sprint final até à
meta, finalmente... ACABOU!
Resultado final:
Inscrevi-me para 18 kms, na semana da prova anunciaram 20 kms e acabei por
fazer 22 kms.
Perdi-me 3/4 vezes no trilho
Levei com 5/6 chapadas arboreas na cara, felizmente não tinha feito a barba
durante uns dias o que evitou uma data de arranhões.
Fiz 857.486 quasi-tralhos, desde semi-entorses até derrapanços incompletos.
Nunca caí!3 Horas e 48 minutos
AGORA NÃO QUERO OUTRA COISA!
Está espectacular!
ResponderEliminarParece-me que de tempos a tempos vou querer revisitar estes textos e fotos de Montejunto...
Beijinhos, boa Páscoa!
Pois é... às vezes ainda passo uns tempos a pasmar para as fotos. Que experiência! A todos os níveis
ResponderEliminar" Corre agora corre e te esconderás entre aquelas plantas, ou te molharás. E sonharáaaaas que és um pirata, tuuuuu sobre uma fragata, tuuuu sempre à frente de um bom grupo de raparigas e rapazes (...)" :D
ResponderEliminarObrigada pelo momento revivalista Tom Sawyer. ;) Eu fazia o mesmo que tu em criança, mas era a Ana dos Cabelos Ruivos. :)
Acho que é por isso que agora gosto tanto de correr em trilhos...
Crónica muito boa. Para o ano é fazer o caminho d'OS HOMENS (e MULHERES, sff)! :)
Estás a ver? Obrigado :) Ainda não percebi como é que se pode desfrutar de um trail de 40 kms. os últimos 3 (de um total de 22) já foram em sofrimento.
EliminarAhhhh, afinal havia outros! O dos comboios, não encarnava era nenhuma personagem em especial.
ResponderEliminarGostei de ler os relatos e de ver as diferentes abordagens sensações e decisões no final :)!
Olha, eu tambem não percebo, por isso nunca me estrei oficialmente num Trail bem nunca fiz uma maratona.
Mas...
Abraço
Epá Zé, reparei agora que não tinha "dado nenhum bitaite" ao teu post!
ResponderEliminarBelo relato! Ao nível do que já nos habituaste :)
Belos momentos em Montejunto!
Estive lá, percorrei alguns kms por perto e deu para perceber que estavas a apreciar aquela envolvente.
Continua a divertir-te pelos trilhos!
Abraço