Introdução à barreira psicológica dos 18 kms
Dedicado à Filó J
Num acto de auto-punição e de purificação pela dor, por não ter ido à
corrida do Destak, decido fazer o primeiro treino de 20 quilómetros de
preparação para a meia-maratona que se avizinha.
Assim, chego a Belém num pôr-do-sol extraordinário, uma baía inteira
banhada em suaves cores alaranjadas e com uma temperatura confortável. Aos meus
pés o rio é um espelho de água translucida. Faço uns alongamentos, ponho umas
salsotas alegres no ouvido e parto calmamente rumo a Lisboa. A pista é completamente
plana, sem obstáculos, o que ajuda no objectivo.
Inicio o treino com a barriga ainda cheia do lanche, o que me dificulta o
ritmo inicial, mas resolvo continuar. Faço um bom ritmo por Alcântara, Cais do
Sodré, Terreiro do Paço, Santa Apolónia (km8).Há muita, muita gente a correr e
a andar de bicicleta àquela hora em Belém.Aliás não é só a correr e de
bicicleta é um mundo inteiro que se junta à beira rio.
Aproveitando as obras feitas à beira rio e da miríade de cafés, bares e
restaurantes instalados,a cidade fervilha de vida àquela hora.Desde namorados abraçados
nas margens,turistas estrangeiros encantados pela luz crepuscular, outros que
se preparam para regressar e ir jantar nos paquetes de luxo, emigrantes
paquistaneses e chineses, pessoas sem-abrigo que se preparam para passar a
noite, ao lado dondocas nas esplanadas que têm um ar de quem nunca trabalhou na
vida, e ainda milhares de pessoas que vão apanhar o barco de regresso a casa.
Chegado a Santa Apolónia não apanho o comboio, volto para trás, e sinto o
primeiro obstáculo, o vento contra. Até aquela altura correr tinha sido um belo
passeio, mas a partir daí começo a ter de lutar contra uma força que me empurra
para trás.
Aos 11 quilómetros faço o abastecimento com um gel com sabor a maçã, que me
acaba por sujar todo…Continuo em direcção a Algés.
Chegado ao km 16, já a noite tinha caído e Belém encontrava-se esvaziada de
tudo, excepto de escuridão e vento. Os corredores que por lá andavam no início
do treino há muito que desertaram. O céu estava despido de estrelas e só se via
uma dança de luz e sombras entre os pinheiros do jardim e os lampiões amarelados.
E é aqui o treino entra numa fase completamente diferente.
De repente uma rabanada de vento faz com que o Tejo se agite efervescente,
como se Neptuno se preparasse para emergir do fundo do mar, e revela um rio transfigurado
num negro-acastanhado lamacento, polvilhado por milhares de seres oblongos e
fluorescentes que espreitam à tona, como almas penadas que me esperam no submundo mas que se
revelam no final, pese embora este cenário tétrico, como sendo apenas... tainhas.
O corpo pouco a pouco tornara-se muito pesado, os músculos das pernas a
sentirem-se presos. Para motivar substituo as salsas cubanas no meu ouvido por Metal.
À beira rio, um pescador fumava à espera da sua presa e ao lado um rapaz
rabiscava um pequeno caderno, enquanto fitava estático um carrinho de bebé ao
seu lado.Seria um poeta?
Se o pescador pega na cana para pintar um peixe, o poeta pega na caneta
para pescar um poema. Se um vê a luz na ponta do seu cigarro incandescendo-se
intermitentemente como um farol que o vai guiando, o outro vê a luz que o guia no
sorriso da criança.
O Poeta e o Pescador, a caneta e a pena, o poema e o peixe. O sonhador e o fazedor
juntos, um procura o sentido da vida por entre duas rimas, ou outro puxa a linha
procurando a vida num sentido. O poeta procura a purificação para um pecado sonhado junto do pescador de almas.
Encontrava-me perdido nestes pensamentos quando de repente, no largo da
Torre de Belém, uma Cocker cor de mel linda, de olhar meigo com a qual me meto,
salta para o meu caminho e põe-se a correr ao meu lado, ultrapassa-me e
provoca-me olhando para trás como se estivesse a mostrar que corre mais
depressa do que eu. Dança à minha frente da esquerda para a direita e da
direita para a esquerda, desenhando "oitos" como se me toureasse. Respondo
fintando-a e ela fica maluca aos saltos.
Adoro-a! Parece que nos conhecemos desde sempre. Desmancho-me num sorriso
de orelha a orelha, quando ela salta com uma alegria infantil, uma vivacidade contagiante.
Entusiasma-me correr ao lado dela mas, por um lado, não é a mim que ela pertence
e, por outro, ficar a brincar com ela implica desistir dos meus objectivos.
Mas a verdade é que ela acaba por ser a companheira ideal para aquele
troço, estava muito desgastado quando a encontro, as brincadeiras com ela,
servem-me de apoio, fazem-me sorrir como uma criança. E é com o coração apertado
que a deixo para trás enquanto ouço o dono a marcar o território: “Filó, anda!”
Foi um momento mágico, de cumplicidade que eu nunca esquecerei, por muito
ridículo que pareça, não sei se por causa do cansaço, se da escuridão, se do
frio, se da solidão, e sei que muito poucos compreenderão o que escrevo, mas
foi grande o impacto que esta situação teve em dar-me forças anímicas para
continuar naquela altura, e foi assim mesmo. Quem me dera que as relações entre humanos fossem assim tão... fáceis. Confesso que vou ter saudades
dela.
Já completamente só, sucumbo num vazio enorme de sombras e trevas criadas por
um aglomerado de árvores. Perdido, não vendo onde pisar ou que direcção tomar
resolvo seguir simplesmente em frente, num salto de fé, e acelerar em direcção
a Algés.
Devidamente iluminado passo a Fundação Champalimaud, a antiga Docapesca e, entusiasmado resolvo aumentar
o objectivo em 1 km, afinal quem faz 20 faz 21.Finalmente chego até a um dos
meus restaurantes preferidos o Siesta em Algés.
O retorno de 1,5 kms para Belém e para o carro é difícil, mas ao som de
“The Loneliness of the Long Distance Runner” e a presença ocasional de outros corredores vai-me ajudando. As pernas doem. Começo a pensar em fazer um sprint no último quilómetro, mas quando lá chego os
músculos das pernas começam a doer de cansaço extremo, o corpo pesa-me e a cada
passada só vou repetindo numa reza contínua para mim próprio:“Não pares, não pares.
Está quase!”
E finalmente cheguei ao fim, 2 horas e 4 minutos depois de ter começado a
correr. Parei o relógio absolutamente derreado. Não fiz um grande tempo, pelo menos comparado com os dos meus companheiros, mas também não me pretendo comparar com eles. Os alongamentos são muito difíceis
mas eu sei que são fundamentais. As pernas quase que não respondem de tão presas
que estão.
No final, para além no cansaço, e por ter feito pela primeira vez 21
quilómetros (depois de uma vida inteira a não conseguir correr 2 minutos
seguidos), estou repleto de uma sensação fantástica de superação que me custa
expressar em palavras. Aí espero que muitos de vocês me percebam…
Zémi, o Poeta.
ResponderEliminarExcelente texto. Parabéns.
Thanks
EliminarZé, parabéns pela quebra da barreira dos 20 kms! Dia 06 de Outubro lá estaremos para melhorar... só espero que não esteja o calor da Corrida do Tejo e sobretudo da Destak!!!
ResponderEliminarVAMOS!!! E tu vais abaixo das 2!
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
EliminarGostei!
ResponderEliminarQuando corremos organizamos a nossa cabeça e pensamos em tudo um pouco!
Acabar ao som de Iron Maiden é bom... é o impulso que falta!
UP THE IRONS! :)
Bons treinos!
\m/ \m/
Eliminar:)
Temos Poeta!!! Já pensaste em escrever um livro? Podes ir começando a trabalhar nisso :)
ResponderEliminarBelo treino! Mais importante do que a distância ou o tempo alcançado é a experiência!
Tenho um "reparo" a fazer: Como é possivel escreveres isto? "Não fiz um grande tempo, pelo menos comparado com os dos meus companheiros, mas também não me pretendo comparar com eles."
Claro que estás a comparar a tua performance com a de outros. Deixa-te isso. Daqui a pouco estás a comparar os teus resultados com o de maratonistas profissionais.
Dá valor ao trabalho que estás a realizar, dá valor à melhoria da condição fisica e lembra-te que o grande desafio é contigo mesmo e simplesmente dar o melhor e te sentires bem :)
Abraço
Obrigado Joel. Dia 6 estamos lá
EliminarExcelente!
ResponderEliminarRI À GARGALHADA com o parágrafo das taínhas (o pessoal cá de casa ouviu e tive que partilhar com eles, que se juntaram a mim!).
Aposto que se a Filó tivesse ladrado, tu terias compreendido o que ela queria dizer... :)
Surpreende-me como podes pensar em tanta coisa enquanto corres.
É assim mesmo: tentar superar-nos a fazer algo de que gostamos! E acreditar, acreditar sempre!
Força!
É verdade se ela ladrasse.
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